‘’Remendado”
Capítulo 1: Quid pro Quo
— Já vou, deu 18H já. Amanhã venho mais cedo, seu Ruy. Fica na paz.
— Falou. Até amanhã. ‘Tamo’ junto!
Ouço as palavras daquela figura, e bato meu ponto. Desço as escadas, e alcanço as pedras da calçada desgastada. Ventava bastante, e as demais lojas do calçadão já estavam fechando-se.
E, assim, eu encerrava mais um dia de trabalho numa fábrica de tecidos em Duque de Caxias.
Numa dessas noites abafadas do verão da Baixada Fluminense, me peguei deitado no chão do quarto encarando o teto. Meu dia havia sido cansativo e, na noite anterior, mal preguei os olhos para uma boa soneca. Andava eu, dessa forma, vivendo de forma autômata: casa/emprego – estudos– emprego/casa. Pensar em um relacionamento se tornou algo incomum para mim, visto que as pessoas se tornaram mais exigentes e, no mercado, o meu modelo ultrapassou. No emprego que eu nunca quis, me paga razoavelmente bem; suficientemente bem para sobreviver – afinal, o nome é salário mínimo por isso. Se fosse salário máximo se chamaria Subsídio Parlamentar.
Eu sou um alguém de 27 anos; estudante, sozinho, trabalho como almoxarife em uma fábrica de tecidos, cansado da minha própria essência e cheio de perguntas. Nas horas vagas, escrevo coisas – tais como esse relato do emplastro de impropérios que é o que chamamos de vida. Ao meu ver, claro; não faça de minhas palavras as suas, o que uma pessoa louca diz não se escreve, é o que dizem por aí. O que chamam de loucura, chamo de enxergar além da bolha que nos rodeia cronicamente. Noutro dia, em minha rotina diária de retorno para casa no ônibus Caxias-Magé, o motorista teve de parar pois – vejam só; um idoso fumava no banco dos fundos e ‘’não sabia dessa proibição’’ – o que atrasou a viagem em 36 minutos apenas por conta das negativas do mesmo em apagar o fumo, ou deixar o veículo. Haviam placas, avisos, etc. E o nosso saudoso senhor resolveu-se por ele mesmo que era de bom tom acender o bendito fumo… Ao fim das contas, apagou o fumo e… desceu um ponto depois. Enfim, casos do acaso.
Observando esses pequenos atos, vejo que nada sei da vida. Atitudes, falas, lugares. Porque as pessoas se permitem levar pelas emoções? Falando assim, até parece que não sou um humano, não é, caro leitor? Tenho endereço, mas minha alma não tem CEP. Mas o fato é que intriga-me a vida; com ela, tive as mais diversas prosas acerca do existencialismo:
– E o que fazer quando se sente uma dor que uma aspirina não cura? Basta chorar? Basta que eu inunde minha alma com minha dor, e lave minha pele com as lágrimas que produzo ao exaurir de minha existência todas as lamúrias que me assolam? Devo deixar que meu corpo reverbere meus sentimentos? Ah, se eu quisesse ficar triste, estaria lendo Schopenhauer – ou apostando na bolsa de valores.
A verdade é que eu sou uma pessoa sem passado, e não me importo. Por muito custo, trabalhei meu cérebro para que ele me fizesse lembrar apenas dos bons momentos da minha existência desde então; os resultados foram que apenas tenho vagos destes flashes e, em um desses, eu era recebido com um sorriso por um rosto feminino. Vendo tal face, tentava eu então sorrir e retribuir o gesto, mas eu só chorava. Não conseguia falar nem me mexer por conta própria, mas eu estava feliz. Foi o único momento da minha vida em que senti a felicidade verdadeira, sem sofrimentos, sem dor. Acho que é por que eu tinha acabado de chegar, e não me explicaram o que ocorreria após aquele primeiro choro.
Creio que, na próxima vez que eu sentir tais sentimentalidades, será em meu leito final, com um verme que me narra ao pé do ouvido minha vida para, ao fim da estória, me roer da carne aos ossos.
Mas, ah… Esses não são assuntos niilistas ou depressivos, não…
Prezado (a), busco aqui esclarecer o que levaram aos fatos da minha prosa, da minha narrativa. Aos fatos que se sucederam, devo afirmar que foi de uma total falta de decoro do Destino.
Em primeiro, venho de uma família cheia de percalços e ignorâncias. Minha mãe teve filhos cedo, e achou ser de bom tom ter mais filhos para segurar o relacionamento com seu primeiro esposo, meu finado pai. Mal sabia ela que ela estava apenas produzindo herdeiros de sua pobreza geral. Após suas desilusões, casou-se com meu padrasto, e teve mais dois filhos, as joias de sua coroa. Após isso, foram muitas águas a rolar nos rios da vida e, eu, marinheiro de primeira viagem, entrei de bucha nessa empreitada que chamamos de ‘’viver’’ – e sem bote, sem saber nadar. Já fui muito traído: Há, há! Se o chifre fosse dinheiro, seria eu uma criatura abastada! Eu apenas tiro risos desses casos, pois de nada me adianta remoer essas coisas. Mas também traí. Tão pouco quanto acho que deveria, mas… enfim. Não me cabiam mais e, nas épocas, não estavam sob meu controle. Nada nunca está sob controle. Não temos controle de nada, afinal.
Por exemplo: minha amiga da escola, Eloísa, tem 27 anos, como eu, e vem de uma família que também não tinha a estrutura familiar sólida, tampouco a estrutura educacional. Ela foi expulsa de casa pela mãe e vivia sendo perseguida pela mesma, e viveu com seu primeiro namorado dos 16 até os 24. Nesses tempos, separaram-se e ela teve um filho fora do relacionamento. Depois dessas idas e vindas, teve mais um filho com seu primeiro ex… separou-se e agora vive com seu terceiro ‘’amor’’. Ela é a prova viva de luta, sucesso e retrocesso. Contando mais sobre essa bela amiga, após muito sofrer em sua humilde vida, voltou a estudar – coisa que havia deixado para trás desde seus 14, que foi quando sua mãe a expulsou de casa. Estudou, formou-se no ensino médio e conseguiu a bolsa de estudos que tanto havia tentado… tudo parecia perfeito. Exceto pelo fato de que caiu em um imenso ócio, a levando a viver de bicos: desde trabalhos simples aos mais elaborados. Às vezes, me pede dinheiro emprestado, quase implorando. Ela não está assim por falta de oportunidades, mas por sabotagem da vida e da sociedade.
Dia desses, vinha eu pelo meu caminho quando resolvi ir até sua humilde casinha para tomar um café e ver como anda sua vida. Caminho pelas ruas de terra batida, e paro em frente ao seu portão. Chamo, e pouco tempo depois, ela me atendeu com um sorriso.
– Boa noite! Entra, vou passar um cafezinho. Tá quente, né? Entra aí, senta na varanda.
Ela me cumprimentava com felicidade; poucas das visitas que ela recebia eram da agente de saúde do postinho e minhas. Assim como eu, ela era sozinha no mundo – não por ser ‘’sozinha’’, mas por não ter os totais apoio e visibilidade que merece. Sento-me na varanda, e observo enquanto ela retorna, e senta em uma cadeira em minha frente.
– O outro está no quarto, as crianças estão vendo TV. Colei o ABC nas paredes do quarto deles, é bom que, dessa forma, vão aprender um pouco vendo as imagens. Vão ficar curiosos e vão querer saber mais e…
Ela iniciava sua fala enquanto acendia um cigarro feito de tabaco e maconha. As olheiras em seus olhos lhe davam uma estranha beleza, e seu sorriso amarelo era tal como o de Gioconda. Pela forma com que seu corpo se comporta na cadeira, é de bom tom afirmar que está há algumas boas horas sem dormir – o que lhe era comum desde a época de nossa mocidade, tendo em vista que são anos de amizade com tal criatura e acabei reparando, em todos esses anos, em seus trejeitos. Convivência é isso. Eu dou um gole seguido de outro no café, que já estava morno, enquanto ela me contava suas novidades com alguma empolgação. Dando uma pausa para respirar e falar entre uma tragada e outra, ela se levanta, e vira-se em direção à cozinha para pegar mais café.
– Já volto, fuma um cigarro também. E, quando eu voltar, você me conta suas novidades. Eu só falei até agora, e você apenas escutou.
– Sou um bom ouvinte, não gosto de interromper ninguém enquanto a mesma fala, você sabe. Disse-lhe, lançando um sorriso sonso em sua direção enquanto sigo seu ‘conselho’ e acendo um cigarro.
– Você sempre foi esquisito. Bem, já volto. Ela se vira, e some através da porta. E apagando as luzes ao passar pelos cômodos, encostou a porta da cozinha ao sair, retornando com mais cigarros de maconha e café. Ao que parece, teríamos uma longa conversa. Ah, não que eu não goste de uma boa prosa, fora que o clima está ótimo pra isso.
– Pelo visto a conversa vai ser boa. Falo, sorrindo, ao notar sua aproximação. Ela senta novamente na cadeira de praia, e acende um cigarro. Bebe um grosso gole de café e, por fim, desaba:
– Estou cansada de lutar por um bem maior, sabe? Tento ajudar, mudar o mundo e os meus problemas e, ao fim, retorno ao começo. Sinto-me tão forte, mas tão impotente ao mesmo tempo. O outro não gosta de conversar sobre os temas que estudei; geralmente ele leva um assunto como culinária, sociologia e comunismo para o lado pessoal. Tudo o que se fala sobre quaisquer temas tem de se filtrar, pois ele se sensibiliza á ponto de afetar nossa convivência. Ou seja: casei-me com um indivíduo sem um pingo de inteligência emocional. Eu converso sobre tudo um pouco, e ele não demonstra interesse algum, assim como a grande maioria.
Eu me inclino à frente e trago o cigarro, logo encho meu copo com café;
– E você, do jeito que é, já sabia bem o quão ignorante é aquele homem, e a sociedade em si também. Você bem sabe disso, não é cega. Hoje, no trabalho, seu Ruy veio comentar sobre o tal novo zagueiro do Flamengo, sendo que estou eu pouco me lixando para o futebol e seus ‘‘heróis’’ – ouvia e concordava apenas para não perdurar o assunto, caso expusesse minha devida e real opinião acerca do mundo futebolístico. A sociedade é assim: exaltam algo que não irá mudar em nada as suas vidas, e sensacionalizam os que ainda possuem o mínimo de consciência de classe, do lugar de onde veio e para onde vão. Por fim, nosso país é um retrato de insoberania – de futilidades, de uma massa emburrecida, vilipendiada, ignorante e entorpecida pelo boçal, drogados pelas grandes mídias e pelas culturas de retrocesso. Uma nação completa sofrendo lavagem cerebral em simultâneo, silenciosamente.
Ela suspira, e traga mais uma vez o cigarro. Estica as pernas e engole o resto de café frio da velha caneca de alça quebrada que segurava:
– Deus, perdoai-nos. Não sabemos o que fazemos mesmo com o óbvio estando tão claro diante de nossos olhos. Mesmo com toda a clareza, fazemos o velho quid pro quo.
Seguimos nossa conversa afiada acerca da sociedade e da vida até umas 23h e pouca da noite, que foi quando achamos de bom tom irmos cada qual para seus cantos e, assim, tentarmos dormir enquanto idealizamos uma sociedade sem tanto proselitismo e hipocrisia velados de ajuda e complacência (...).
Continua na próxima Terça-feira, às 23h.